A Travessa do Pântano de Veneza

Ao cair da noite, no terceiro dia da lua, criaturas diversas  se dirigem para um canto do bosque.
Estranho, criaturas tão diferentes caminhando juntas para a mesma direção. Algumas aves, com plumagem clara, cores apagadas.  Dois tigres tristes, rabugentos. Alguns ursos magros. Cervos e seus chifres retorcidos. Pequenos roedores e suas barbichas longas. Alguns insetos que não conheço e nem saberia explicar.

A curiosidade me move,
Onde estarão indo?
Porque aquela mariposa garbosa está voando ao lado daquela cotovia?
Qual a força que impede o urso de liberar sua fome e atacar o veado?
Será que eu posso chegar perto deles? Serei ferido?
Com receio e medo me aproximo do grupo inusitado. Caminhamos juntos.

Andamos por alguns minutos e chegamos em um Pântano. Lugar antigo, escondido. Nada cresce ali.
O caminho se afunila por entre as árvores mortas em uma travessa estreita;
A entrada é pequena, mas somos recebidos por um Louva Deus Majestoso.
Aos poucos, os animais passam pela entrada, um a um.

Boa Noite! Hoje brindamos amigo! Na nossa clareira, toda forma é bem vinda!
O Louva Deus abre um espaço por entre as folhas secas e entro.
O espaço é relativamente pequeno, lembra o conforto da minha caverna.
Fogos fátuo liberam uma luz inebriante. Odor de musgo, odor de feromônios, odor de comida.

Em um canto, uma cigarra canta uma melodia conhecida. A cotovia imita. Até o tigre antigo tenta acompanhar com sua voz rouca e grave. Aos poucos, os animais vão se entrosando. Grilos pulam felizes quando o Sapo usa seu ritmo ensudercedor para agitar o ambiente. O tempo passa, a festa segue.
Os animais que chegaram com aparência triste e cansada, agora soltam gargalhadas ao seu modo.
Todos estão felizes.  Eu estou feliz.

A água é farta e limpida. Existe todo o tipo de comida, para todas as espécies e criaturas.
Somos acompanhados e assistidos por uma Joaninha colorida, sempre alegrando o ambiente e fazendo rir, uma Cigarra esbelta, orgulhosa e graciosa, uma Abelha doce, meiga e determinada, um Touro simpático, poucas palavras e imponência respeitável. Além do amigo Louva Deus, um serelepe Vaga Lume que parece estar em todos os lugares todo o tempo e uma Garça, ágil e precisa. Existem outros que não vejo, estão nos cantos ajudando.

Em um momento, um gafanhoto fica mais feliz, se abraça em uma gaivota, trocam um beijo apaixonado!
Como?
A Gaivota segue dançando com o gafanhoto na pista e ninguém parece se importar. Eles estão felizes, tão felizes que seu tamanho, forma e cor não importam mais.
Outros conjuntos de almas surgem. Inusitadas talvez, mas verdadeiras em sua crença.
Com o passar da noite, também vou perdendo minha forma.

Sempre me vi como um lobo solitário atrás de caça fácil, agora não quero mais caçar. Quero dançar, quero sorrir e viver. A caça não importa. Importa o eu e você.

Um Tigre jovem e sorridente se aproxima. Ele se parece com meu sonho profundo. Não é um monstro, não pode me ferir, mesmo com sua imponência e força. O Medo volta, preciso da companhia desta alma. Nos olhamos e beijamos. O mundo some…

Não vejo mais o Pântano…
Agora sou um pequeno brilho negro, rodeado de contas coloridas e acompanhado pela  maciez ocre do meu sonhado Tigre. As formas não existem. Tamanhos e distâncias também. Nesta clareira iluminada pela noite, todos são iguais, todo amor é possível. Sou eu e único. Minha alma transborda e as essências se alinham. A felicidade me faz confiante na vida. As cores contagiam e vivo como não sabia ser possível.

Começa a amanhecer, aos poucos, os seres voltam a sua forma. Eu volto a lobo.

Saio entristecido, o encontro acabou.  Sigo meu caminho mas nunca esqueço minha nova forma adquirida. Lembro do beijo do Tigre sonhado. Lembro da minha alma bonita e leve.

Impossível realizar que em algum lugar deste bosque frio, no canto do Pântano de Veneza, pudesse existir a magia da liberdade.

Hoje, ao correr, caçar e viver, observo…
Algumas vezes, vejo um brilho no olhar do outro.  Um tremular na voz da cigarra, uma gargalhada destoada no grunhir do urso, um brilho neon nas penas do beija flor.
Esses seres são especiais… Eu sei sem palavras e eles sabem no meu semblante.
O Piscar do olho indica. Na próxima lua cheia nos encontraremos nos pântanos de Veneza. Iremos juntos para um lugar nosso.

Agora não sou mais sozinho, tampouco irrelevante,

somos Venezianos.

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