Humanidade, Intimidade e Solidão

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Dormimos em camas acopladas as paredes, em turnos. Tudo era organizado em turnos. Trabalhávamos o quanto fosse necessário de acordo com as missões. Estas eram principalmente de reconhecimento.
Meu trabalho consistia em calcular a posição das embarcações inimigas utilizando os dados dos equipamentos de sonar. Me sentia muito frustrado, estudei tanto para operar máquinas simples. Cálculos pre formatados e formulas conhecidas me auxiliavam a chegar aos resultados. Números e mais números. Os operadores de rádio passavam as minhas coordenadas junto com a suposta identificação do navio para os postos de informação. Também auxiliava o navegador e o capitão, informando quaisquer dados solicitados. Era uma operação rotineira, irritantemente desmotivante.

O Capitão era extremamente rígido quanto a relações interpessoais e não tínhamos permissão para conversarmos. Só o essencial. Nos chamávamos por apelidos e utilizávamos códigos. Nunca sabíamos quando nossas comunicações seriam interceptadas ou se existia alguma embarcação inimiga não detectada por perto. Vivíamos no monótono silêncio fornecido pelos motores ensurdecedores, entrecortado por gritos codificados. Solidão de 50 homens em um espaço fechado. Tensão, medo, suor. Só resistíamos por sermos máquinas, por termos perdido os nossos nomes. Eu não era mais um engenheiro com sonhos. Agora era a calculadora humana que dava as coordenadas.

Nossa primeira baixa foi um marujo que contraiu um tipo de febre. O médico não tinha certeza da doença que acometia nosso colega. Não tínhamos tempo nem proximidade para sentir pesar ou acompanhar as tentativas de cura. Ele faleceu 4 dias depois dos sintomas. Subimos e descartamos o corpo no mar. O capitão falou algumas palavras e voltamos ao nosso rotineiro dia. Fiquei assustado por não sentir nada. Sabia que as minhas coordenadas faziam com que a guerra continuasse e entendia que os números forneciam locais para bombas serem jogadas. Provável que várias outras “pecinhas de guerra” tenham morrido em função disso. Mas ele estava comigo, convivíamos naquele pequeno espaço e eu nem sabia seu nome.

Nem sempre eu era máquina. Principalmente quando sentia fome, medo e solidão. Mesmo agindo como tal, eu ainda pensava. Isso contrastava com o que ocorria ao redor. Parecia que eu vivia em um pesadelo, onde meus pensamentos me levavam para um lugar mas o dia a dia mostrava outro.

Aos poucos comecei a perceber e me apegar aos resquícios de humanidade deixados pelos outros.

A cama que eu usava era também utilizada por outro técnico . Meu turno terminava as 20 horas, eu comia, me lavava e ia dormir. Nunca fui de conversar muito e não queria quebrar as regras. Não sabia o nome do outro técnico que dormia antes de mim. Sabia quem era, mas obviamente nunca havíamos trocado uma palavra sequer.

Era estranho para mim compartilhar a cama com outro homem. Sempre que eu estava me despindo para dormir, ele estava levantando e vestindo sua farda. Eu sou filho mais velho. 10 anos de diferença entre eu e meu irmão mais novo. Sempre tive minha privacidade, como um filho único. Ele acordava, eu imagino uns 5 minutos antes de eu chegar. Eu removia toda a roupa exceto as cuecas. Esfregava o pano úmido no corpo. Ele levantava nu, sempre com uma leve ereção. Eu não me importava, era como se não percebesse. Estávamos muito ligados ao trabalho e a rotina para nos sentirmos acuados ou menos homens ao vermos isso. Ele se vestia, começando pelas meias, camisa, cuecas, calça, botas. Eu limpava todo o corpo antes de remover as cuecas, coisa que fazia apenas no último minuto quando ele e os outros estavam saindo da área dos dormitórios. Sempre fui tímido e sentia um resquício de vergonha. Eu limpava minhas partes íntimas e voltava a vestir a cueca. deitava na cama que ele usara. Sentia o cheiro. Suor, sabão, perfume, pés, cabelos, talco. Sentia um acolhimento imenso no calor deixado por ele.

Sabia que a parte de baixo das suas costas eram mais quentes que suas pernas. Sabia que ele suava na nuca e nos pés. Imaginava se ele tinha curiosidade de saber com quem dividia a cama. Ao acordar, as 3h , a primeira visão que tinha era de outros colegas na mesma rotina. Não via ele durante a manhã. O turno dele terminava as 14 e ele ia para cama logo após este horário.

Mas como disse, não havia como conhecê-lo além disso. Ele vivia em um turno diferente do meu. Nem amigos poderíamos ser.

Com o tempo passei a cultivar uma tensão com o momento de dormir. Aguardava ansioso para vê-lo, a única pessoa que compartilhava alguma intimidade comigo. Era muito estranho pra mim sentir este tipo de sensação por outro homem. Mas era a única coisa que me mantinha consciente naquele mundo planejado.

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