Pela nação, tornei-me formiga

U-Boot

Uma peça. Um objeto usado para as conquistas dele, deles.
Nada além de uma pecinha minúscula em um tabuleiro de xadrez imenso.
Assim eu me senti no dia em que chegou aquela carta.
Símbolo da SS. Texto direto.
Convocação para pertencer a tripulação de uma nau, seguido da data de apresentação. Tudo muito limpo e claro.

Sabia que devia minha honra e civilidade ao Fuhrer. Sabia que estávamos em guerra.  Sabia que em algum momento seria chamado,  mas quando ocorre, sempre é difícil. Não gostava de pensar que minha formação em engenharia serviria para os fins bélicos, mas era um mal necessário.
Todos os dias éramos recrutados. Engenheiros com qualquer aptidão matemática, principalmente para trabalhos nos navios e inteligência. A maioria sentia orgulho de tal tarefa. Eu,  mesmo sabendo da importância, preferia adotar a dúvida. Li muitos filósofos e muitos livros de guerra para entender que sempre existem dois lados,  e o lado certo é o que vence no fim. Não necessariamente o meu lado.

Dia de apresentação. Formação militar como aprendido na academia.
Estava pronto para cumprir meu dever.

Mais formação, ordens. Fomos enviados para a cidade portuária. Eu não tinha qualquer conhecimento de como operar  um submarino. Conhecia todas as teorias, mas a coisa em si é totalmente diferente. Estava apreensivo e com medo, mas fora treinado para não demonstrar qualquer reação.

Minha primeira sensação foi a claustrofobia. O submarino era dividido  em basicamente 3 partes. Casa de máquinas, área de convivência e sala de comando. Existia ainda um subsolo que complementava a casa de máquinas. Cada compartimento fechado com portas maciças de ferro para impedir  o afundamento em caso de bombardeios. Sabíamos que vários submarinos haviam sido afundados, ficava imaginando o desespero de estar no fundo do mar dentro de uma máquina como aquela, sem poder fugir.

Percebi que sofreria muito ali. Estava acostumado a espaços  grandes. Em um submarino,  tudo era compartimentalizado e medido.  Tudo era embutido, lacrado, escondido. Manivelas de pressão na frente das áreas de trabalho. Beliches nas casas de máquinas ao lado de torpedos, armas e outros equipamentos. Nenhum espaço para itens pessoais. Tudo era de todos. Não tínhamos privacidade nenhuma.

A primeira vez que precisei ir ao banheiro me senti totalmente envergonhado em defecar ao lado de outro recruta. Ele também estava envergonhado,  existia um misto de ansiedade, necessidade e vergonha. Fechei os olhos e tentei soltar. Não consegui, me contive durante algum tempo e parti.

Passei vários dias para  me acostumar, a cada vez que precisava ir ao banheiro eu observava cuidadosamente para estar sozinho, e eu ainda não podia abandonar o posto. Era algo praticamente impossível em uma embarcação daquele tamanho. O único banheiro privativo era o dos oficiais, mas eu não era um oficial, obviamente. Então me obrigava nos tempos em que podia.
Acabei me acostumando a ver meus colegas nus e a estar nu na frente deles, também aos cheiros e ruídos  de cada um. Existiam os mais cuidadosos, os totalmente relaxados, mas, de uma forma ou de outra não existe como manter a total  higiene dentro de um submarino.  A água era racionada e nos limpávamos com panos úmidos, o calor era extremo a maioria do tempo pelo aquecimento dos motores, então não existia muito o que fazer.
Com o tempo e a necessidade, aquilo foi perdendo a importância. Passei a ser uma formiga e a parar de pensar. Parar de sentir pena de mim mesmo. As memórias da minha casa antiga foram substituídas pelos acontecimentos rotineiros de guerra. Tudo tornou-se rotina.

Compartilhe nosso conteúdo