Pensamentos sobre a Consciência Negra

Primeiro, este post reflete minha percepção (é óbvio, mas precisa ser lembrado) e é uma construção, não é uma ideia definitiva porque este conceito é evolutivo. Sou branco. Na minha certidão de nascimento estou registrado como pardo, creio porque tenho traços indígenas e não sou “branco transparente” como os alemães e italianos. A explicação pra isso é que meu bisavô era negro, que casou com uma imigrante alemã, no meio da mistura tem italianos, poloneses, espanhóis e indígenas e tenho quase certeza que mais negros em outro lado da família (minha avó nega até a morte que tenha sangue “preto”). Então o que se ressalta na minha aparência é o olho mais fino, típico de povos indígenas mas minha pele é branca que bronzeia fácil, portanto não sofro e nunca sofri preconceito de cor. Sou um branco miscigenado, tipicamente brasileiro, falando para todos sobre como eu tento constantemente superar o racismo presente em mim e entender como posso fazer pra expandir da melhor maneira possível esse conceito.

Também sou gay, e sulista, nascido em Cachoeira do Sul e morador de Porto Alegre há mais de 20 anos (vou falar sobre isso mais tarde).
Nesta semana, aconteceram várias coisas importantes que fizeram eu pensar bastante sobre o assunto.

Primeiro, uma discussão em um grupo lgbt+ do facebook onde várias pessoas de outros estados alegam que os sulistas (genérico e mais abrangente possível) são o povo mais homofóbico e racista do país. Comparando sulistas a nazistas, dizendo que o sul deveria separar do resto do país, etc.
Segundo, gravei uma aula no meu trabalho, onde a professora fala sobre diferenças sociais relacionadas ao trabalho (atendo uma escola judicial focada em ensino da justiça do trabalho) , também transmiti uma aula no zoom falando exatamente sobre isso, um debate com vários estudantes de especialização em direito do trabalho.
E, por fim hoje, mataram um negro em um supermercado em Porto Alegre, reforçando a ideia de que todo o “sulista” é nazista, racista e homofóbico.

Então comecei a pensar em vários momentos onde eu demonstrei racismo e onde eu percebi isso próximo. Algumas histórias pra ilustrar.

Um colega de uma empresa que é office-boy, o menino é negro e transporta valores altos as vezes. Uma vez ele foi abordado pelos seguranças de um banco porque estava carregando um alto valor em um malote. Lembro que fiquei muito irritado. Eu admiro ele justamente porque ele tem um excelente bom gosto pra roupas, não que seja determinante de caráter, mas não tinha absolutamente nada pra tornar ele suspeito a não ser a cor. O que me chamou a atenção é que ele resolveu não se pronunciar sobre o assunto, assumiu uma posição relativamente passiva perante a agressão.

Tive um assessor negro, recrutado por mim (na época eu escolhia minha equipe) em um projeto que coordenei em São Paulo e em uma sala de reuniões lotada, minha chefe disse a seguinte frase – “Ele é assim, mas é um funcionário excelente”. Eu senti bastante raiva, mas mais raiva ainda foi quando a equipe do hospital resolveu que quem deveria fazer as entrevistas com os coordenadores seria eu, e não ele. Sendo que ele tinha mais preparo do que eu pra realizar essa tarefa (contratei ele justamente por essas habilidades, eu sempre fui mais técnico). Eu era coordenador e não me opus a determinação da minha chefe. Eu também errei.

Tinha um negro que quase tivemos um relacionamento, ele vivia dizendo que “os brancos gostam de café com leite”… Isso sempre me incomodava porque eu achava ele interessante não pela cor, mas pela personalidade e inteligência. Eu nunca entendi porque ele precisava se defender do mundo branco falando essas coisas, e é uma deficiência minha não entender. Mas o comportamento não me agradava. Me parecia que ele estava reforçando uma diferença ou tentando destacar a cor ou o corpo como diferença e eu não conseguia ver essa diferença deste jeito.

Eu cresci em uma chácara ao lado de uma vila, também perto de uma região muito pobre onde existia o que pode ser chamado de uma favela. Então a minha infância era na convivência constante de pessoas negras e pardas. Nós tínhamos macacos em casa, os bichos macacos mesmo. E tinha um rapaz que ajudava a cuidar da chácara com meu pai. Então ele teve um filho e (nesse ponto vocês já devem ter entendido) e o rapaz trouxe o filho pra meus pais conhecerem. Me dói um pouco hoje, mas eu disse que o filho dele era bonitinho, parecia um macaquinho. Todos riram na hora da minha inocência (tinha no máximo 6 anos), mas minha mãe me xingou, imediatamente. Lembro que eu demorei pra entender que era errado aquilo, mas não talvez pelos motivos que minha mãe percebia. O avô dela é negro e então sei que a relação dela com pretos é diferente.
Eu gostava dos macacos, achava bichos legais e aquele bebê preto me parecia fisicamente com um macaco! É absurdo que até hoje eu não entendo perfeitamente o quão aquilo era errado ou inocente ou impróprio.

Meu irmão mora em uma cidade colonizada por alemães. Em uma cidade alemã nós somos tratados como diferentes (o apelido do meu irmão é “preto”, mesmo ele sendo branco como eu). Uma vez fomos a um supermercado regional e as pessoas simplesmente param pra ver nossa família… É bizarro se sentir observado. Só se sentir observado já é estranho.

Hoje mataram um negro em Porto Alegre, em um supermercado. O homem foi agressivo com uma mulher ou cometeu algum ato impróprio, foi removido por seguranças e espancado / sufocado até a morte. A pergunta é, se fosse um branco, seria diferente? Outro ponto que levantaram e que vale a pena ser comentado, o homem morto não tinha uma cor marcante negra, ele é um pardo mais escuro do que eu, o suficiente para ser identificado como uma “ameaça” em um supermercado, mas também branco o suficiente pra ser identificado como branco pela comunidade negra (vi negros questionando se ele era negro ou branco, e se realmente sofreu preconceito ou uma reação exacerbada). Então mesmo os negros e pardos mulatos não se entendem, e os pardos mais brancos como eu, são brancos em Porto Alegre, mas são como negros em Caxias do Sul ou Blumenau.

Então… Os meus pensamentos sobre isso são conflituosos e complexos. Tenho certeza de que não é meu papel falar sobre o racismo, mas percebo que todos devem ter e conversar sobre a consciência do racismo. O branco precisa falar sobre isso, ele não sente, mas o racismo é gerado pelos brancos, então como ele vai aprender sem falar sobre o assunto?

Quanto ao fato de sulistas serem racistas. É muito difícil aceitar que somos mais ou menos racistas do que qualquer outra parte do país. Sinto uma generalização imensa, principalmente entre os LGBTs (e alguns setores da esquerda extrema, o que me lembra que este é um dos motivos que afasta o movimento de esquerda de alguns grupos). Em números absolutos, nos últimos anos o racismo e homofobia subiram muito no sul do país (imagina o motivo?), mas subiu também no país inteiro. E a região sul geralmente tem índices menores de registros de injurias raciais do que o resto do país. Então por falta de dados, estamos talvez mais uniformes com relação ao racismo (vou concluir mais tarde)?

Me chateia é que existe uma intenção e muito trabalho pra tentar diminuir as diferenças. Percebo uma consciência na maioria das pessoas de que isso é errado, e no meu mundo LGBT eu não convivo com ninguém que fale diferente (mas existe). Como gay, sinto alguns dos elementos associados normalmente ao racismo e seria ilógico perpetuar algo que sinto em parte.

Questionei uma professora da escola de direito sobre o assunto, ela disse que essa discussão é irrelevante, porque a dor não pode ser mensurada. A pergunta que ela me fez é, qual índice foi usado para determinar se negros sofrem mais preconceito? Valor de salário? Educação, número de Ocorrências Policiais? Uma pesquisa subjetiva com a comunidade negra? Essa pesquisa foi repetida em todo o país ou cada estado criou seus índices? Então é impossível determinar qual estado ou região é mais racista ou menos racista. Só é possível aceitar que a tua região possui esse problema e que o país inteiro possui este problema, cada região com suas características.

E ai que eu chego no ponto em que está meu pensamento hoje, longe de ser uma conclusão, mas condensando e resumindo algumas coisas que aprendi nestes dias.

É evidente que o racismo estrutural existe. É evidente que as pessoas brancas agem de forma desproporcional e desfavoráveis com pessoas negras. É evidente que pardos “mais pardos” e pardos “menos pardos” são vistos de forma diferente pelos próprios negros e se julgam e se criticam, inclusive gerando preconceito de cor dentro da própria raça. Isso acontece todo o tempo, com todas as pessoas.

Precisamos nos policiar para quebrar essa visão. Precisamos forçar nossa percepção para ver o negro em todas as cores como um humano igual, mas com dificuldades causadas por nós, fugindo da ideia de “menos por ser preto” mas entendendo que eles tiveram mais dificuldades do que nós brancos para chegar onde estão.

E por último e talvez mais importante. Não existe como mensurar a dor de alguém. Não existe fórmula para dizer como dizer que dói mais a um preto sofrer preconceito do que outro, da mesma forma que peso ou preço pode ser pago a uma mãe que perdeu um filho ou um homem que foi morto em vez de ser detido. Essa dor é intangível. Só podemos saber que efetivamente dói e é nossa responsabilidade fazer com que seja mais fácil suportar mudando aos poucos o mundo ao nosso redor.

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