Irmão mais velho

Me criei em uma região bastante pobre, quase campestre, onde existiam fazendas e chácaras. Também próximo de uma vila com pessoas bastante miseráveis. Não sei se é comum em todo o país, mas é chamada aqui no Rio Grande do Sul de Cohab..

Nosso pai trabalhava, além do emprego formal, como caseiro de uma  chácara. Meio hectare de terra, onde cuidávamos das plantas e do imenso terreno. As regras da casa eram, meus pais trabalhavam e eu, como irmão mais velho, tinha que cuidar do meu mano mais novo e não podíamos sair do pátio. Nos finais de semana e de tarde, meu pai e avô cuidavam dos afazeres da chácara.. Capinar, cuidar das plantas, remendar as cercas. Foi neste mundo que tive minha infância.

Mas, como crianças curiosas e cheias de energia, eu e o mano nos aventurávamos pela região…  O bairro tinha várias regiões difíceis, tinham os campos, os matos, as sangas, as vilas. E a gente saía de bicicleta pra “fazer aventuras”.  Reforçando que a regra numero um era – proibido sair do pátio. Mesmo assim, a gente saía.

Uma vez, eu e meu irmão saímos para fazer nossas aventuras.
Era uma brincadeira entre nós. A gente imaginava que estava fazendo uma “campanha pelo desconhecido” e nos enfiávamos nos matos só pela diversão mesmo.

Aconteceu várias vezes de nos machucarmos, nossa mãe nunca sabia o que realmente tinha acontecido, e a gente ocultava isso dela. Tínhamos um um pacto de irmão pra irmão. A ideia era impedir as represálias.

Neste dia em especial, a gente andou várias quadras e fomos parar em uma área  onde eram criados búfalos. A gente queria ver os bichos e se divertir. Crianças inconsequentes.
Só que no campo existia uma região de banhado…  Pra quem não sabe, é como um pântano, uma área alagada com profundidade que vai até o meio do corpo de uma criança.

A gente passou por 3 ou 4 cercas de arame e acabamos nesse lugar… O problema é que a lama nos prendeu no chão. Ficamos cobertos. Nisso percebemos que estávamos perto de um ninho de “quero quero”. É um pássaro típico da região que tem ferrões nas asas e que atacam qualquer um que chega perto dos ninhos…

Pois então.. Os “Quero Quero” nos emboscaram e começaram a revoada.. Nos atacando. Eu, como irmão mais velho, puxei o mano (atolados no barro) e saímos correndo em direção às nossas bicicletas… Os animais acabaram nos machucando (quem conhece quero quero sabe que eles são bastante agressivos)… No meio do desespero, meu irmão perdeu o chinelo dele. Uma Havaianas (Que, mesmo popular, era um item muito caro para nosso estilo de vida, já que meu pai e minha mãe eram assalariados)..

Enfim. Tirei meu mano do enredo, nos salvamos dos “Quero Quero” e fomos para casa. Mas meu irmão havia perdido um chinelo… Como contaríamos a nossa mãe?
Sei que, no final da tarde, nossa mãe chegou. Ela sabia que havíamos feito algo errado.
Viu meu irmão sem o chinelo e brigou conosco… Pegou a vara e nos bateu.

Eu e o mano chorávamos. A gente sabia que tinha feito uma coisa certa. Estávamos nos divertindo como crianças deveriam se divertir. Mas assim mesmo a gente apanhou. Eu não entendi no momento. Afinal, eu estava vivo, era só um chinelo. Nem que fosse uma parcela razoável do salário deles, era apenas uma coisa. Eu havia me livrado de um imenso problema com meu irmão.

Mas minha mãe foi implacável ao descontar uma raiva que eu não entendo. Ela estava me ensinando uma lição que eu não entendia.

Ontem aconteceu uma situação que me lembrou isso. Fui implacável no ataque e na dor. Não medi esforços para desencadear e desestruturar um amigo que passou por uma situação absolutamente impensável e irremediável.

Reagi como minha mãe, como o irmão mais velho. Me abstive da dor e da empatia do outro para infligir pena. Alterei o peso da culpa e desloquei de maneira leviana o motivo versus a ação e reação. Fui um tolo emocionalmente desequilibrado.

Mesmo sabendo da dor vivenciada, eu desloquei a reação, foquei no que era importante egoisticamente pra amim. No que estava na minha frente, em quem estava vivo e disponível. Não é questão de ser mentira ou verdade. Mesmo minha mente super protetora avaliando a veracidade do acontecimento, a minha maior preocupação era o motivo pelo qual meu irmão se sujeitou a tal perigo.

Eu queria realmente poder contornar cada passo de quem me circunda. É um imenso defeito. Quero poder absorver todas a dores e resolver os problemas de quem está ao meu redor.  Assim como fiz com meu irmão no passado.

Mas nós crescemos. Cada um faz suas escolhas e não deveria me importar qual versão da história foi contada a mim. Eu deveria ser empaticamente capaz de abstrair a necessidade de compartilhamento versus a verdade. Esta verdade que sempre só existe dentro de nós.

Me preocupei. Agi de maneira extremamente controladora. Ao ponto de impor minha forma de pensar ao outro. Exigi provas do que não precisa ser provado. Exigi silêncio e causei dor. Não a mesma dor que minha mãe me causou quando nos bateu pela perda do chinelo do mano no barro, mas com a intenção de recriminar a atitude de alguém tão protegido, onde o amor é tão forte que a proteção machuca.

Não consigo administrar ou mensurar a dor que causei a meu amigo, meu irmão. Me sinto tão impotente que não sei como agir.
De tal forma a não realizar o mal que eu estava fazendo ao questionar a veracidade. Não existe veracidade neste momento.

A verdade é irrelevante quando alguém que tu ama está sentindo dor.

E eu fui um tolo. Fui minha mãe, fui o algoz protetor.

Hoje entendo a reação. Entendo como alguém ama tanto outra pessoa que pode ferir com palavras e controle. Não quero mais que tu saias na noite. Não quero mais que tu estejas vulnerável. Não admito, como um tigre, dragão, monstro inominável, que alguém te faça mal. Quero tu preso próximo. Tu és meu irmão. Meu sangue por escolha. Minha família escolhida. Nada te separa de mim. Nem mesmo por opção. Tu és meu (egoisticamente) pra cuidar e nutrir.

Errei, errei em um nível imensurável. Todas as pessoas que amam erram. Mesmo não sendo justificativa, é uma verdade. Arrisco minhas escolhas para te ter próximo.
Entendo que só o tempo pode te fazer perceber o excesso de zelo e a raiva que senti. O Eu protetor que não precisa proteger, embora faça isso no dia a dia….

Enfim, entre meias palavras e certezas de compreensão, encerro… Mas tenho certeza de que nada acontece por acaso.

Temos duas alternativas, quebrar ou seguir.

Seguindo, somos mais fortes.

Quebrando, somos fracos, mas procuramos compreender o que aconteceu e crescemos com o próximo passo…

Eu sigo teu comando.  E, simplesmente… Desculpas…

Neste caso, tu determina minha reação…. Mas te amo meu amigo, irmão. Desculpa pelos erros do zelo. Por mim tu ficarias trancado em uma gaiola de ouro. Mas, além de irmão, tu és um igual.

Sejas feliz. Espero que comigo ao teu lado.

 

Compartilhe nosso conteúdo

1 Comments

  1. IROMILDE TEREZINHA GONCALVES CORREA

    Bem sábio depois de muitos anos tu lembrares deste fato,parece q pelo menos te serviu para algo bom,pedir desculpas a quem magoaste.